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Ser mulher no Ministério Público Mineiro

Minas Gerais é, historicamente, um estado precursor quando o assunto é representatividade feminina no Ministério Público. É daqui – mais precisamente da cidade de Guaranésia – a primeira mulher nomeada
promotora de justiça na América Latina, Iracema Tavares Dias. Em 1935, sua nomeação foi tão alardeada que até saiu no jornal: “uma senhorinha foi eleita promotora de justiça”, lia-se, de forma quase sensacionalista. Não cabia no pensamento da época a informação de que uma mulher poderia sair do
“seio do lar” para estudar direito, quiçá tornar-se promotora ou procuradora de justiça.

De lá para cá, muita coisa mudou: mais mulheres passaram a ocupar espaços no Ministério Público mineiro e a presença delas não é mais tão alardeada, apesar de precisar ser sempre celebrada.

No mês da mulher, a AMMP conversou com algumas associadas que estiveram à frente de casos importantes para o estado: na defesa da mulher nos crimes de feminicídio, no rompimento da barragem de Brumadinho, na volta às aulas das crianças no contexto de pandemia: mulheres que têm consciência de sua coragem e também da responsabilidade de representar tantas outras mulheres, tão diferentes, em território mineiro.

O que elas viveram, e viram, é digno da força e garra inerentes à existência feminina. Como exemplo, as imagens após a tragédia de Brumadinho não saem da cabeça da Promotora de Justiça Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini, que atuava na Promotoria da cidade: “Na entrada da cidade, o bulício do amontoado de câmeras e microfones nacionais e internacionais. Atravessada a ponte de acesso à sede do Município, sobre o rio Paraopeba nitidamente contaminado, o profundo e contrastante silêncio do luto coletivo daquela pacata cidade estampada por flâmulas pretas nas janelas. Adentrando a zona rural, nas primeiras reuniões com a comunidade, uma multidão de pessoas extremamente vulneráveis atingidas bradava suas urgentes necessidades e demandas, com as vozes por vezes abafadas pelo barulho ensurdecedor dos helicópteros que sobrevoavam a procura de corpos. Atuar nas esferas socioambiental, socioeconômica e criminal, com foco na incansável tentativa de responsabilização, reparação integral, prevenção e restauração, exigia e envolveu sobretudo escuta qualificada, mobilização/ coesão/ empoderamento social para participação central e ativa da pessoa atingida, presença no território, interlocução permanente, resolutividade, imediatismo nas ações, firmeza, proatividade, estratégia, humanidade, atuação conjunta interinstitucional, trabalho em equipe, madrugadas no ofício, extrema dedicação e abdicações. Trouxe incomparável aprendizado, trocas, crescimento, intensa e particular realização no lutar em prol da sociedade afetada, e deixou marcas, profissional e pessoalmente”, relembra.

O cuidado com o meio ambiente tem relação direta com esses desastres, e também há mulheres à frente do MP na defesa desses direitos, tão urgentes no momento atual. A Promotora de Justiça Cláudia de Oliveira Ignez reforça essa importância. “Sinto muita gratidão, responsabilidade e compromisso como todas as colegas do MP, em cada TAC ou ACP compelir os inadimplentes sociais, econômicos, políticos e sociais a ter que rever suas ações ou omissões em prol do bem comum, enxergando o compromisso intergeracional ético, urgente e indeclinável de sermos os impulsionadores de novas pactuações sociais, políticas e econômicas, onde o direito Humano a um Meio Ambiente sustentável seja a pauta primaz de sobrevivência das novas e futuras gerações e a missão maior de todo aquele que nasce sob o signo do feminino e do Ministério Público, como um pacto transnacional, transversal e internacional atemporal pela única bandeira admissível, qual seja, a da Proteção internacional e integral do Humano que habita em cada um de nós. Não é uma escolha, é a única opção de valor ético e constitucional global”, define.

A defesa da educação também foi pauta fundamental no contexto de pandemia – e contou com intenso trabalho também das mulheres do Ministério Público. “No início do ano de 2022, o MPMG alcançou importantes resultados judiciais e extrajudiciais, com o retorno às aulas presenciais das escolas em todos os municípios mineiros. Agora, o maior desafio é enfrentar os elevados custos sociais do prolongado fechamento das escolas e garantir educação de qualidade para todos. A escola é um espaço estratégico de proteção e desenvolvimento individual e coletivo e, como dizia Mandela, ‘sempre parece impossível, até que seja feito’”, define Ana Carolina Zambom Pinto Coelho, que lutou pela volta às aulas na capital mineira.

A Promotora de Justiça Denise Guerzoni Coelho, do Tribunal do Júri de Belo Horizonte, esteve à frente de casos que chocaram o estado pela violência e pela falta de empatia com a existência feminina, que se reflete diretamente nas violências diárias vividas pelas mulheres. “Do ponto de vista jurídico, social, cultural, civilizatório e até mesmo antropológico, nada é mais chocante que o homicídio, em qualquer viés, incluindo nessa gama o feminicídio. Do ponto de vista subjetivo, acredito que o fato de ser mulher não está na base de minha reação individual no que tange a um caso chocante. Antes de ser mulher ou homem, vem o fato de ser humano. Se um fato é chocante, este deve tocar a todos, indistintamente. Com essa premissa, a atuação do Ministério Público, sob a guia de uma mulher no desenrolar judicial de casos ditos chocantes, traz uma visão do gênero feminino para fatos que até pouco tempo atrás eram vistos e enfrentados somente do ponto de vista masculino, o que faz aumentar o espectro de análise do fato e nos oferece uma sensação de completude sob o aspecto da representatividade social”, reflete.

Para 2022, o desejo é que as mulheres do Ministério Público sejam incentivo para inspirar as próximas gerações de meninas a acreditarem que sim, elas podem ser o que quiserem: inclusive competentes e brilhantes Promotoras e Procuradoras de Justiça, trilhando o caminho que um dia foi aberto por Iracema Tavares Dias, no (não tão longínquo) ano de 1935.

Recorte do jornal Estado de Minas, de 23 de maio de 1935, destaca a nomeação da primeira mulher Promotora de Justiça no MPMG.

A voz (e vez) das mulheres

“A atuação de destaque de mulheres no MPMG representa a permanente e incessante abertura de portas e a concretização de exemplos intergeracionais, com implicações relevantes na promoção de equidade de gênero.”
Ana Carolina Zambom Pinto Coelho – Promotora de Justiça e Coordenadora estadual de defesa da educação do MPMG

“A diversidade no MPMG traz, a meu ver, maior representatividade para a legitimação da atuação na defesa de uma sociedade plural. Em Brumadinho, particularmente, as pessoas atingidas em maior intensidade eram, em boa parte, mulheres, assim como o eram mais de 70% das lideranças comunitárias. Ser mulher contribuiu para que eu desenvolvesse o trabalho com maior perspectiva de pertencimento dessas pessoas, além de projetos na Comarca, conjuntamente com outras colegas, com enfoque especificamente voltado para o acolhimento e fortalecimento desse grupo, diferenciadamente atingido.”

Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini – Promotora de Justiça, atuou entre 2019 e 2021 na Promotoria de Justiça de Brumadinho

“A atuação das mulheres do Ministério Público como eu procuro desempenhar flui de olhar no rosto do mais carente as feições de meu filho e sonhar para ambos uma economia e uma ordem econômica, social e judicial cidadã e inclusiva. […] É um misto de força e coragem de sonhar e realizar a mudança de paradigma no corpo social tão sofrido de nosso País, imprimindo a marca de força feminina na defesa precípua dos hipossuficientes e na proteção dos valores humanos e sociais de nosso tempo.” 

Cláudia de Oliveira Ignez – Promotora de Justiça de Nova Lima

“Penso que se as mulheres conseguiram se destacar em posições que antes eram de quase exclusivo domínio masculino, há um peso não indiferente na visão feminina do panorama humano, o que é extravasado e reafirmado no exercício das atribuições ministeriais. É
de se considerar que ao homem sempre foi conferida a possibilidade de atuação como única fonte de sapiência, enquanto a mulher teve que lutar para ver considerada sua capacidade intelectual. Do momento, porém, que a mulher conseguiu conquistar seu espaço, a constatação foi o reconhecimento de que a sua atuação revela também a correta interpretação e aplicação dos instrumentos jurídicos, integrando o mosaico do universo judiciário em intersecção com o masculino, indiferentemente.”

Denise Guerzoni Coelho – Promotora de Justiça do Tribunal do Júri de Belo Horizonte

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