Waldir Vieira fez do Ministério Público o seu propósito, ao ponto em que é quase impossível separar sua vida pessoal da funcional. Sua atuação movimentou as engrenagens da história e contribuiu para solidificar a carreira como essencial ao funcionamento do Estado e da sociedade.
Nascido 1º de agosto de 1933, em Uberaba, no Triângulo Mineiro, Waldir Vieira, por pouco, não tomou caminho muito distante das leis. Incentivado pelo pai, Waldemar Vieira, que gostava de eletrônica, foi para São Paulo tendo como objetivo prestar vestibular para Engenharia. Porém, um golpe do destino mudou a sua vida e a do MPMG. A mãe, Amália Tahan Vieira, o informou em uma ligação que Uberaba havia aberto uma escola de Direito. Restou fazer as malas retornar para sua terra natal.
Formado em 1956, ingressou no MP em 1958 por entender que a instituição era a guardiã dos bons princípios da sociedade, como ele mesmo dizia. Iniciou sua trajetória como adjunto de Promotor em Conceição das Alagoas. Foi promovido ao cargo de Promotor de Justiça e permaneceu na cidade até 1963, quando foi movido para Jequitinhonha, onde ficou até 1965.
Nesse ínterim, chegou a passar para um concurso no MP de São Paulo, quando ficou entre os primeiros 23 de 400 concorrentes. No entanto, o então presidente João Goulart publicou um Decreto-Lei estabelecendo que a Federação complementaria os vencimentos do MP e Magistratura do Estados. Resolveu ficar em Minas. O decreto nunca foi regulamentado e o valor nunca foi recebido.
Sua passagem em Jequitinhonha foi marcante também por uma situação curiosa: chegou a ajudar uma médica a socorrer um jovem que havia sido picado por uma cobra. A perna do rapaz gangrenou e não existia estrutura hospitalar no local. A médica encontrou um vidro de éter e um serrote. Coube a Vieira ministrar o anestésico e segurar o paciente, que teve perna amputada. O rapaz chegou a ir à casa de Vieira para agradecer. Se não fosse o atendimento, realizado sem luz e sem água encanada, ele não teria sobrevivido.
Os três anos seguintes foram dedicados à Promotoria de Justiça de Montes Claros. Em 1970, já em Belo Horizonte, Waldir Vieira chegou ao cargo de Procurador de Justiça. Após 10 anos, tornou-se Procurador-Geral de Justiça. Começaria, então, uma revolução.
Na época, o MP não tinha a representatividade que tem hoje e a estrutura era acanhada. Em depoimento prestado ao Programa História Oral do Ministério Público de Minas Gerais, em 2017, Waldir Vieira contou que “a sede não tinha nem cortinas, o que obrigava aos promotores se afastarem das mesas para conseguir trabalhar com a luz solar”.
Coube a Waldir lutar por melhores condições de trabalho, mesmo sem dotação orçamentária para tanto. Como ele mesmo descreveu, o Ministério Público de Minas Gerais não tinha nem mobiliário. Para resolver o problema, entrou em contato com seu amigo Lara Resende, diretor da penitenciária de Ribeirão das Neves, e pediu ajuda para construir os móveis, já que o presídio tinha uma marcenaria. A madeira foi comprada e enviada ao local para a fabricação das peças.
Além da atenção à estrutura física, buscava, incessantemente, a valorização da carreira. Participou ativamente da articulação institucional pela aprovação, no Congresso Nacional, da Lei Complementar 40/1981, que definiu prerrogativas ao MP brasileiro. E a mobilização rendeu outra história interessante.
Vieira convenceu o senador mineiro Murilo Badaró da importância da matéria e seu voto de apoio era certo. Contudo, no dia da votação, o voo do parlamentar atrasou. Receoso, foi ao gabinete de Tancredo Neves e o pediu que fizesse um longo discurso para atrasar o início dos trabalhos. Funcionou. Badaró chegou e a lei foi aprovada.
Ainda Procurador-Geral de Justiça, conseguiu uma audiência com o presidente João Figueiredo para pleitear equiparação salarial com os juízes, após o artigo de lei que cumpria essa função ter sido vetado pelo então ministro da Casa Civil, Leitão de Abreu. João Figueiredo não concordou.
Como não conseguiu na esfera federal, mobilizou-se para convencer o então Governador de Minas Gerais, Francelino Pereira dos Santos, da importância de conferir mais autonomia administrativa ao MPMG. Teve êxito e o resultado foi a aprovação Lei Estadual n. 8.222/1982.
A legislação adequou a instituição à nova realidade, substituindo definitivamente a designação “Procurador do Estado” por “Procurador de Justiça”, apesar de dividi-la em duas categorias (A e B) e previu dotação orçamentária própria.
Posteriormente, criou e instalou órgãos de administração e de execução, como a Chefia de Gabinete do procurador-geral de Justiça; a Assessoria Especial para Pareceres; a Assessoria de Recursos Extraordinários; a Assessoria de Pesquisa, Orientação e Publicidade; o Centro de Aperfeiçoamento Cultural e Profissional e a Coordenadoria das Promotorias de Justiça da Capital.
Instituiu também o Boletim informativo da PGJ, criou grupos de estudos em Belo Horizonte e em algumas comarcas do interior, regulamentou a atuação dos estagiários nas Promotorias de Justiça, instituiu a Comissão Especial de Estudos dos Problemas da Violência Urbana, presidida pelo promotor de Justiça Joaquim Cabral Netto, e incorporou 481 novos volumes à biblioteca da PGJ. Na esfera associativa nacional, Vieira contribuiu também para criar a CAEMP, hoje CONAMP.
Aposentou-se em 1983 e teve mais tempo para se dedicar à pintura, sua outra paixão. Waldir Vieira deixou a vida em 5 de abril de 2021. Deixou de herança o Ministério Público que existe hoje.
Em entrevista, os filhos Waldir Vieira Jr., Maria Amália, Isabel, Ana Rita, Ana Maria, Maria Inês e Maria Cecília, relataram a personalidade humanista do ex-Procurador-Geral de Justiça.
1) O que o Ministério Público representou para seu pai?
O Ministério Público foi o segundo lar de nosso pai. Foi lá que ele cultivou a maior parte de suas amizades e relacionamentos. Foi lá, principalmente, onde ele pode exercer sua grande paixão pela justiça, na defesa dos interesses sociais e do direito coletivo. Papai se condoía com a injustiça e sofrimento dos menos favorecidos, e o Ministério Público deu a ele a oportunidade de cumprir essa grande tarefa que ele desde cedo escolheu para si.
2) Quais a lembranças mais marcantes você tem de Waldir Vieira na figura de pai?
Várias lembranças nos remetem à memória de nosso pai, mas há uma em particular que sempre nos acompanha. Papai era um espírito forte, sempre disposto a enfrentar as dificuldades da vida com otimismo e garra. Como ele dizia, “a vida é cheia de vicissitudes”, mas isso não o impedia de acordar a cada novo dia sorridente e brincalhão, contagiando a todos com sua alegria e disposição. Foi um grande homem e pai sempre presente, o farol que nos guiou iluminando nosso caminho em meio às “vicissitudes da vida”.
3) Como a senhora gostaria que o MPMG, amigos e familiares se lembrassem de seu pai?
Gostaríamos que nosso pai fosse lembrado como o bom homem que foi, que viveu uma vida boa e plena, e que procurou melhorar a vida daqueles com quem teve o privilégio de conviver e dividir suas experiências.
Depoimento da filha, Raquel Santos Vieira
Falar sobre meu pai neste momento de dor é quase impossível.
Meu sentimento é que foi tirado de mim tudo, ou quase tudo, deixando um vazio e uma vontade de não usar palavras; porque até usar palavras poderia ser um roubo do que restou de lembrança. Não falar é guardar, é não esvaziar ainda mais o que já não existe. Se as memórias forem colocadas para fora, elas podem se dissolver no espaço tempo e deixarem de existir. Então, o que posso dizer sem mais perdas é que meu pai amava a vida e dizia: “enquanto houver vida, me resta viver, viverei”.
Meu pai era curioso por natureza. Gostava de pensar e buscar respostas. Não tinha medo de ser transformado pelas ideias. Nos últimos anos, começou a dedicar seu tempo a filosofar sobre o sentido das coisas, da vida. Buscou respostas em centenas de livros, mas a lista nunca se esgotava, porque a vida seguia existindo.
Homem de cultura e bondade, adorava ler e ouvir música. Gostava das pessoas que agiam para transformar e gerar bons frutos. Em todos os trabalhos por onde passou, pensou o coletivo, sempre buscando o bem da maioria. Queria a justiça social.
Meu pai sempre me surpreendia. Entre as muitas experiências e momentos que tivemos juntos, uma das nossas últimas conversas é a que mais me toca… Ele me disse: “Filha, eu não tenho medo da morte nem de morrer, estou tranquilo. ”
Para mim, ficou a saudade. E sobre a saudade, encerro com Mia Couto: “Saudade é uma tatuagem na alma, só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós”.
Os Procuradores de Justiça aposentados Luiz Carlos Abritta e Joaquim Cabral Netto são testemunhas oculares da história de Waldir Vieira
WALDIR VIEIRA: UM GÊNIO NO MINISTÉRIO PÚBLICO
Luiz Carlos Abritta – presidente do IHGMG, Procurador de Justiça aposentado e ex-chefe de gabinete de Waldir Vieira.
Waldir Vieira, há pouco falecido, foi um verdadeiro gênio. Trabalhador incansável, dedicou sua vida praticamente ao Parquet.
Lembro-me bem: em 1981, terminei meu mandato na presidência da Associação Mineira do Ministério Público, entregando à classe a primeira sede própria, à rua Paracatu, ao lado do Fórum Lafaiete (hoje o prédio pertence à OAB/MG).
Waldir Vieira, Procurador-Geral de Justiça, convidou-me para ser seu Chefe de Gabinete. Fiquei aturdido, porque o cargo aludido não existia na estrutura da Procuradoria. Todavia, ele traçou e executou um plano: eu era promotor titular da 4ª Vara Criminal de Belo Horizonte e ele me disse para fazer uma permuta funcional com um promotor substituto. Feito isso, tornei-me substituto e ele me nomeou Chefe de Gabinete, sem qualquer vantagem pecuniária. Trabalhamos juntos por quatro anos.
No governo Francelino Pereira, Waldir, com a sua tenacidade, conseguiu a equiparação plena de vencimentos do Ministério Público com a Magistratura. Todavia, surgiu um entrave, pois a Magistratura tinha o Tribunal de Alçada (onde funcionavam os juízes) e o Tribunal de Jus-tiça Desembargadores. Waldir solucionou a questão em pouco tempo, conseguindo a criação dos cargos de Procurador A para o Tribunal de Alçada e o Procurador B para funcionar no Tribunal de Justiça.
Para conseguir atingir tal meta, foi essencial a atenção de Aloísio Andrade, Chefe da Asses-soria Técnico-Consultiva( hoje Procuradoria- Geral do Estado). Muitas e muitas vezes Waldir e eu saíamos à noite da Procuradoria e íamos apresentar e analisar as propostas alusivas ao Ministério Público com o Chefe da Assessoria.
Outro fato interessante é que Waldir, nas solenidades públicas, não bebia nem comia (ele nunca fazia uso de bebidas alcoólicas), mas procurava aproximar-se dos Secretários de Estado e outras autoridades para fazer reivindicações para solucionar questões do Ministério Público.
A senhora de Waldir e a minha faziam parte da Associação Feminina do Ministério Público, que exercia ações sociais.
Finalizando, quero assinalar o fato de que Waldir Vieira era um pintor de quadros de alta sensibilidade, que atingiam o que de mais recôndito está em nós, levando-nos aos páramos do Absoluto.
Se houver possibilidade, voltaremos ao assunto, para comprovar que Waldir Vieira revolucinou o Ministério Público de Minas Gerais.
Depoimento:
Joaquim Cabral Netto
Joaquim Cabral Netto – Procurador de Justiça aposentado, 1º Diretor de Comunicação Social do IHGMG e presidente da Comissão Especial do Ministério Público durante mandato de Waldir Vieira como Procurador-Geral de Justiça.
Poucos sabem que uma das características de sua vida foi sua preocupação com a situação do menor. Assim, tão logo se viu nomeado Promotor de Justiça de Conceição das Alagoas (1960), no Triângulo Mineiro, ele criou a “Liga de Proteção aos Menores Abandonados, ao Preso e sua Família”.
Promovido para cidade de Jequitinhonha (1963), criou o “Curso de Alfabetização”, a “Liga de Proteção aos Menores” e a “Casa de Aprendizagem Doméstica”, que, em regime de semi-internato, ministrava aulas de culinária, corte e costura, bordado, puericultura, higiene e educação moral, para meninas de 14 a 18 anos de idade.
Removido para Raul Soares (17.11.1964), dali foi removido para Montes Claros (05 de junho de 1965), onde continuou sua admirável atuação social. Ainda Promotor de Justiça daquela cidade, em 1° de janeiro de 1968 foi colocado à disposição da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), em Belo Horizonte, onde ficou, na sua Presidência, até 28 de dezembro de 1970.
Em 1º de janeiro de 1968, já na direção da Febem, foi promovido para Belo Horizonte, continuando, todavia, à disposição daquele órgão.
Em 28 de fevereiro de 1980, foi promovido a Procurador de Justiça. Sua nomeação a Procurador-Geral de Justiça, em 3 de junho de 1980, não deixou de suscitar comentários: dizia-se que, à época, era o único membro da instituição a chegar à sua chefia, sem nunca ter posto os pés no Fórum Lafayete”.
Foi, no entanto, um dos mais dinâmicos Procuradores Gerais que já passaram pelo Ministério Público de Minas Gerais.
Nomeado Procurador-Geral de Justiça pelo Governador Francelino Pereira, de fevereiro de 1980 a março de 1983, pôs em execução uma série de medidas de natureza administrativo/patrimoniais e de cunho normativo-funcional que deram uma dimensão renovada ao Ministério Público; remodelou as instalações da Procuradoria-Geral e do Conselho Superior; criou e instalou órgãos de Administração e de Execução, como a Chefia-de-Gabinete do Procurador-Geral; a Assessoria Especial para Pareceres de Competência Privativa do Procurador-Geral; a Assessoria de Recursos Extraordinários; a Assessoria de Pesquisa e Orientação; o Centro de Aperfeiçoamento Cultural e Profissional do Ministério Público. Criou, também, a Coordenadoria das Promotorias de Justiça da Capital, e instituiu, com uma tiragem trimestral de mil exemplares, o “Informativo da Procuradoria-Geral”, destinado a divulgar os atos administrativos de interesse dos membros da Ministério Público, bem como decisões judiciais.
Pelo “Ato n.7”, do Procurador-Geral de Justiça, foi constituída Comissão Especial de Estudos do Problema da Violência Urbana, presidida pelo Promotor de Justiça Joaquim Cabral Netto, e integrada pelos Promotores de Justiça Luís Carlos Abritta e Lauro Pacheco de Medeiros Filho. Como resultado disso, surgiu um diagnóstico de causas da violência e foram levantadas possíveis medidas no combate a ela, em leis de origem federal, estadual e municipal, o que foi traduzido em trabalho publicado com destaque na Revista JUS, da AMMP, em seu 3º volume.
Foi durante a sua gestão que o Ministério Público, em face da Lei Complementar n. 40/81, que o ministério Público saiu da estrutura operacional da Secretaria de Justiça, passando a ter autonomia administrativa. A modificação exigiu do Procurador-Geral muita paciência e tato, pois o fato, a princípio, não foi bem entendido pelo então titular daquela Secretaria, que persistia em despachar, pessoalmente os expedientes o Ministério Público com o Governador do Estado. No princípio, o então Secretario de Justiça “concordava, no máximo”, que o Procurador-Geral estivesse junto dele nos dias de despachos regulares. Em pouco tempo, Waldir Vieira passou a exercer com plenitude sua nova função.
Durante seu mandato as Associações de Classe do Ministério Público do Brasil buscavam, no Congresso Nacional, a criação de uma lei que estabelecesse as linhas e garantias fundamentais para o Ministério Público dos Estados da União. Eu era, à época, o Presidente da entidade hoje denominada CONAMP (Confederação Nacional do Ministério Público). Sentia, à época, que os Procuradores-Gerais dos Estados da Federação não se lançaram com denodo em busca daquela lei. Aproximei-me de Waldir Vieira, pedi-lhe sua adesão ao nosso trabalho corporativista, e ele terminou por tornar-se meu companheiro de todas as horas, o que acabou consubstanciado na Lei Complementar Federal n°40, de 1981, a qual passou a ser considerada a “Lei de Alforria do Ministério Público dos Estados”. Com a Constituição de 1988, os princípios daquela Lei Complementar 40 foram inseridos naquela Constituição.
Waldir Vieira foi um dos homens que engrandeceram o Ministério Público de nosso Estado, cuja memória e atuação ficarão gravados na saga de uma geração que um dia procurou o melhor o Brasil. À passagem de seu féretro por nossa memória, eu incluo minha cabeça e lhe agradeço em meu nome, e no de todos os integrantes de nossa geração.