Epaminondas Fulgêncio Neto* Fernando Rodrigues Martins**
“venho do século passado e trago comigo todas as idades”
(Cora Coralina. Meu livro de cordel. São Paulo: Global,
1997, p.73)
O respeito aos direitos dos aposentados, pensionistas e portadores de doenças raras e supervenientes (que se associam à noção de pessoa com ‘deficiência derivada’) representa diretriz básica do Estado Constitucional. Em atendimento às exigências da Constituição Federal, a legislação brasileira contempla diversas disposições voltadas a garantir prioridades na percepção de benefícios e verbas indenizatórias a estes grupos, de reconhecida vulnerabilidade e, até em alguns casos, hipervulnerabilidade. É necessário (senão atrasado), o esforço dos gestores do Ministério Público, exortando aqui a legislação pertinente e o dever fundamental da administração pública, assegurar que tais preferências distributivas sejam atendidas, especialmente a considerar outra irritação inquietante: os efeitos danosos que o inadimplemento reiterado destas verbas possa causar em termos de desequilíbrio fiscal ou orçamentário.
A Constituição Federal no artigo 201, incs. I e V, inscreve a proteção e a dignidade do segurado do Regime Geral de Previdência Social, prevendo que a aposentadoria e a pensão são direitos de todos os trabalhadores, considerando a “incapacidade permanente” e a “idade avançada”. Ainda na legalidade constitucional a carga de deveres fundamentais dos quais os ‘idosos’ são titulares é exuberante, exortando sempre a concretude da dignidade, tanto que o disposto no art. 230 exige: “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
Ao seu tempo, a Lei nº 8.213/1991 também fixa diretrizes para a concessão de benefícios, destacando a importância da prioridade no atendimento às pessoas com deficiência e aos que enfrentam doenças graves.
Não fossem os textos legais acima, a Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e a Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) reforçam a necessidade de tratamento prioritário e adequado para esses cidadãos, tanto nas esferas de saúde quanto no acesso a benefícios previdenciários, especialmente considerando os processos administrativos e as decisões jurídicas respeitantes a tais direitos.
A Lei Complementar 34/94 não tratou diretamente destas ‘prioridades’. Em verdade ocupou-se de estrutura e funcionalidade voltada aos ‘aspectos institucionais’. Dos temas ‘existenciais’ e ‘fundamentais’ dos membros do Ministério Público e servidores ocupou- se com sérios defeitos de proteção insuficiente, deixando que o sistema jurídico assim aprouvesse em outras regulações. O resultado disso é o pior: a cada direito conquistado e ante o dever de transparência de eventuais recursos pagos se verifica o discurso fácil e oportunista que critica indolentemente a todos que têm o direito de percepção de verbas atrasadas e isonômicas. Em outras palavras: a ausência de referido ‘dever de cuidado’ na matriz legal, aliviou a instituição e constrangeu cada membro e servidores pelos noticiários sensacionalistas.
Verdade que dois registros são importantes quanto à mencionada lei complementar. O primeiro, aquele transcrito no art. 140 que possibilita a aposentaria por invalidez do membro do Ministério Público e que, nestas circunstâncias, encontra abrigo na Lei 13.146/15. O segundo (e mais relevante) atribui ao Procurador-Geral de Justiça (art. 18, inc. VII) o dever de elaborar a proposta orçamentária, estabelecendo as ‘prioridades institucionais’ e as diretrizes administrativas, aplicando as respectivas dotações. E ao abrigo dos valores humanos, pergunta-se: ‘qual seria a prioridade institucional com predomínio fundante em maior peso que o abrigo aos seus membros e servidores’?
Na realidade, as indenizações quanto às verbas isonômicas estão descurando da determinação constitucional. Nos pagamentos realizados é perceptível, inclusive, que membros sem o mesmo tempo de carreira e bem mais jovens que os aposentados recebem estipêndios maiores, invertendo os valores constitucionais aos quais (logo) o Ministério Público está vinculado e que deveria tutelar e promover. Enquanto a Constituição Federal tratou de ‘transformar necessidades em direitos fundamentais’, a estratégia interna de gestão torna tais ‘direitos inservíveis’ ou ‘direitos violados’.
A administração pública tem o ‘dever fundamental’ de observar as prioridades estabelecidas pela legislação. Isso não se restringe apenas ao reconhecimento dos direitos dos aposentados e pensionistas, mas abrange também a ‘eficiente’ gestão orçamentária e fiscal. A LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), Lei Complementar nº 101/2000 (art. 16,
§ 1º, inc. II), destaca que o planejamento e a execução orçamentária devem considerar as ‘prioridades sociais’, garantindo a proteção dos direitos fundamentais. Assim, se a administração pública falhar na implementação de programas que assegurem a prioridade aos aposentados e portadores de doenças, poderá incorrer em inconstitucionalidade e, consequentemente, em responsabilidade (aviltando ainda mais o orçamento).
Registre-se que essa obrigação não é apenas ética, mas também legal, porquanto os créditos já são reconhecidos formalmente, mediante processo administrativo. E, nesse ponto, o não cumprimento das prioridades por completo resulta em danos econômicos e danos existenciais significativos, notadamente considerando a situação etária e a vulnerabilidade financeira dessas categorias. Numa única observação: a ‘precarização das condições de vida’ de nossos aposentados, pensionistas e pessoas com deficiência.
Ademais, a inércia ou a morosidade na efetivação das indenizações não apenas infringe direitos constitucionais, mas também pode gerar desequilíbrios fiscais. Isso ocorre porque o atraso no pagamento de indenizações leva diretamente à aplicabilidade dos encargos adicionais, como juros e correção monetária, que oneram ainda mais as finanças públicas.
Adicionalmente, a ausência de pagamento de indenizações gera um efeito cascata impacta o equilíbrio fiscal do Estado. Com o aumento dos encargos financeiros, o gestor se vê obrigado a alocar mais recursos para cobrir as reconhecidas dívidas, comprometendo investimentos em outras áreas essenciais.
Argumentos jurídicos de base para o correto tratamento da espécie não faltam. Ademais, determinados acórdãos têm tratado da questão da prioridade no recebimento de indenizações por parte de aposentados e pessoas com deficiência. Muitos tribunais já regulamentaram internamente a matéria, reafirmando a necessidade de proteção especial a esses grupos vulneráveis, garantindo que a prioridade não seja apenas formalidade, mas efetiva garantia de direitos.
Hoje, em muitas hipóteses, são os sucessores que vivem do direito conquistado pelos membros e servidores, contrariando a lógica do direito à prioridade e, o pior, substituindo o real prejudicado (leia-se, vítima). Evidente que esse direito corresponde à possibilidade de utilizar os recursos a que fazem jus, especialmente nas idades avançadas, justamente para dar conta dos momentos mais graves da vida (enfermidades, superendividamento, abandono etc.). Tudo compatível com os princípios constitucionais da igualdade e dignidade da pessoa humana.
Claramente que se esvaem pelas mãos o direito fundamental de viver os estipêndios e indenizações pelos nossos idosos e pensionistas, justamente quando o direito já lhes assegura as condições materiais de vida, muitas vezes negadas por quem deveria por elas velar.
* Procurador de Justiça aposentado. Professor de Processo Penal. Coordenador do Departamento de Aposentados e Pensionistas da AMMP.
** Procurador de Justiça. Professor de Direito Civil. Membro da Câmara de Procuradores de Justiça
O artigo não reflete, necessariamente, à opinião da AMMP